Durante muito tempo prolonguei a
chegada deste dia, o dia em que eu assistiria ao Laranja Mecânica, 1971, um
filme de Stanley Kubrick baseado na obra homônima de Anthony Burgess.
Certamente prolonguei dispendiosamente a chegada desse dia, não posso negar,
mas que fique claro que não o fiz de maneira consciente devido a algum motivo
especial, tentando evitar algo ou esperando por algo ou seja lá o que for, mas
sim por condições adversas situacionais, as quais não cabem aqui neste texto
enumerá-las.
Agora, tendo finalmente assistido
ao filme (bom lembrar, com o incentivo de muitos queridos ao meu redor,
especialmente de uma estimável professora), vejo que seja um momento oportuno
para brevemente analisa-lo e relacioná-lo com questões importantes da
contemporaneidade brasileira que instigam o debate, a reflexão e trazem a tona
temas universais já tratados outrora por autores clássicos.
Bem, a princípio já sabia que
Laranja Mecânica não era um filme comum, tendo em vista o seu diretor e o
prestígio notável do longa metragem, que mesmo já passados 40 anos continua no
imaginário cinematográfico, influenciando novas obras e inspirando jovens
artistas. Traçando um paralelo com outros filmes de Kubrick é possível perceber
algumas semelhanças, tais como os significados implícitos no filme, a violência
recorrente e as diversas camadas de roteiro que tornam o trabalho especialmente
mais rico e passível de diversas interpretações possíveis. Também é fácil notar
diferenças, por exemplo, a sexualidade é um assunto muito mais tratado nesse
filme do que em 2001 uma odisseia no espaço ou em O iluminado. Mas de qualquer
maneira, Kubrick deixa a sua marca registrada, o seu estilo único, que é
inconfundivelmente singular, permeando todo o filme.
Logo no início somos apresentados
a um cenário de violência extrema, onde um grupo de jovens como uma gangue de
delinquentes juvenis perpetra uma série de atos criminosos, atos de que mais
parecem explosões de loucura, tais quais agressões a um mendigo, brigas contra
outras gangues, invasões e estupros. Tudo feito gratuitamente. Como diversão. Esse grupo pratica esses atos frequentemente
durante as noites, demonstrando assim uma ausência de mantimento da segurança
em meio à sociedade, sendo as autoridades incapazes de manter a ordem social.
Aqui podemos intercruzar a teoria de estado de natureza de Hobbes, onde havendo
a ordem natural, o Homem estaria em estado de guerra constante para com os seus
semelhantes, demonstrando a natureza animalesca e violenta do Homem. A falta de
segurança devido à ausência da promoção eficiente de serviços adequados por
parte das autoridades pode ser interpretada como uma “falta de lei”, remetendo
dessa forma a ordem natural, onde na vaco deixado pela não existência do
Leviatã prevalece à lei do mais forte. E assim todos estão carentes de proteção
e vulneráveis a todo tipo de ato de violência.
Também é possível, contrastando
essa interpretação anterior, relacionar essa parte do filme com a análise de
Montesquieu, de certa forma nesse tema oposta a ideia de Hobbes, em que no
tratado O espírito das leis Montesquieu considera que no estado de natureza o
Homem não estaria num estado de guerra constante, mas sim num estado de paz
constante, tendo em vista que o medo e a covardia seriam sentimentos mais
simples, pois estariam mais diretamente relacionados às necessidades mais
básicas do ser humano, que é a autopreservação, em contrapartida a raiva e a
violência seriam sentimentos mais compostos, considerando que viriam depois dos
anteriores. Para Montesquieu a violência, e por assim dizer, a guerra, só seria
possível já com a criação da sociedade. Dessa maneira, sob essa análise, o
próprio ambiente em sociedade apresentado no filme é que seria a causa de toda
essa violência desmedida. Vale salientar que a sociedade apresentada no filme é
cheia de vícios e degeneração.
A falta de sentido, a falta de
objetivo, o niilismo, é evidente na vida do protagonista e líder da gangue. Mas
não só na dele, como também em todos os outros integrantes da gangue e isso se
estende a todos os demais cidadãos apresentados. A violência, a opressão, os
jogos de poder, parecem ser uma tentativa de preencher esse vazio existencial.
O filme segue e o protagonista,
Alexander Delarge, após ser traído por seus comparsas, acaba sendo capturado
pela polícia. Ele é condenado a cumprir regime fechado por 14 anos por crime de
homicídio. Após 2 anos de preso surge uma oportunidade de encurtar a sua
estadia no xadrez, um método novo pretende curar criminosos em poucos dias e
por conseguinte libertá-los transformados, resolvendo o problema da
superlotação dos presídios. Alexander ouve sobre o programa e faz de tudo para
participar. E consegue. Entretanto Alexander não sabia que o programa de “cura”
posteriormente iria lhe causar tanto sofrimento.
O programa consistia em realizar
diversas sessões cinematográficas com cenas horripilantes de atos terríveis,
prendendo o detendo em uma camisa de força e até mesmo impedindo o mesmo, com
arames especiais, de fechar os olhos, forçando-o a assistir em todos os mínimos
detalhes a todas as cenas. Alexander passa por todas as sessões e então
finalmente é libertado. Agora, toda vez que ele se vê envolvido em uma situação
violenta ou escuta a nona sinfonia de Beethoven (Beethoven fazia parte da
trilha sonora em algumas sessões) começa a passar mal e a sentir-se fortemente
desconfortável.
A partir daí um personagem, o
padre da prisão, diz-se contrário ao programa porque ele seria um programa
desumano, pois o paciente “curado” não teria mais escolha em agir corretamente
ou não. Assim ele perderia a sua autonomia e humanidade, tonando-se semelhante
a uma máquina. Um ser mecânico.
Essa é uma discussão ética, onde
é possível analisar a validade de uma determinação governamental capaz de
invalidar as faculdades de escolha de um indivíduo. Os direitos individuais e a
natureza da validade de um governo. Em John Locke vemos que um poder
governamental estabelecido só é legítimo conforme os seus atos estão de acordo
com o interesse do povo, ou seja, quando o governo, ou o Estado, torna-se
desvinculado aos interesses do povo ele se torna ilegítimo. O que permitira aos
indivíduos em organização autentica destituir esse governo e estabelecer um
novo governo legítimo. Um governo autoritário coercitivo nunca é legítimo e
deve ser destituído.
Vemos também sob a interpretação
de Rousseau que o poder emana do povo e que um governo legítimo necessariamente
passa pela vontade do povo. Ou seja, um governo despótico, autoritário,
tecnocrático ou ditatorial, que corrompe a direção da nação, é contra a
autodeterminação e fraternidade entre os Homens.
Enfim, Laranja mecânica é um
filme muito rico e discutir várias questões importantes o tomando como linha de
partida é muito fácil. Essa é uma das razões as quais Laranja Mecânica é um
clássico da sétima arte. Certamente um dos filmes mais icônicos de Stanley
Kubrick.