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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Laranja Mecânica, loucura juvenil e os direitos




Durante muito tempo prolonguei a chegada deste dia, o dia em que eu assistiria ao Laranja Mecânica, 1971, um filme de Stanley Kubrick baseado na obra homônima de Anthony Burgess. Certamente prolonguei dispendiosamente a chegada desse dia, não posso negar, mas que fique claro que não o fiz de maneira consciente devido a algum motivo especial, tentando evitar algo ou esperando por algo ou seja lá o que for, mas sim por condições adversas situacionais, as quais não cabem aqui neste texto enumerá-las.
Agora, tendo finalmente assistido ao filme (bom lembrar, com o incentivo de muitos queridos ao meu redor, especialmente de uma estimável professora), vejo que seja um momento oportuno para brevemente analisa-lo e relacioná-lo com questões importantes da contemporaneidade brasileira que instigam o debate, a reflexão e trazem a tona temas universais já tratados outrora por autores clássicos.
Bem, a princípio já sabia que Laranja Mecânica não era um filme comum, tendo em vista o seu diretor e o prestígio notável do longa metragem, que mesmo já passados 40 anos continua no imaginário cinematográfico, influenciando novas obras e inspirando jovens artistas. Traçando um paralelo com outros filmes de Kubrick é possível perceber algumas semelhanças, tais como os significados implícitos no filme, a violência recorrente e as diversas camadas de roteiro que tornam o trabalho especialmente mais rico e passível de diversas interpretações possíveis. Também é fácil notar diferenças, por exemplo, a sexualidade é um assunto muito mais tratado nesse filme do que em 2001 uma odisseia no espaço ou em O iluminado. Mas de qualquer maneira, Kubrick deixa a sua marca registrada, o seu estilo único, que é inconfundivelmente singular, permeando todo o filme.
Logo no início somos apresentados a um cenário de violência extrema, onde um grupo de jovens como uma gangue de delinquentes juvenis perpetra uma série de atos criminosos, atos de que mais parecem explosões de loucura, tais quais agressões a um mendigo, brigas contra outras gangues, invasões e estupros. Tudo feito gratuitamente. Como diversão.  Esse grupo pratica esses atos frequentemente durante as noites, demonstrando assim uma ausência de mantimento da segurança em meio à sociedade, sendo as autoridades incapazes de manter a ordem social. Aqui podemos intercruzar a teoria de estado de natureza de Hobbes, onde havendo a ordem natural, o Homem estaria em estado de guerra constante para com os seus semelhantes, demonstrando a natureza animalesca e violenta do Homem. A falta de segurança devido à ausência da promoção eficiente de serviços adequados por parte das autoridades pode ser interpretada como uma “falta de lei”, remetendo dessa forma a ordem natural, onde na vaco deixado pela não existência do Leviatã prevalece à lei do mais forte. E assim todos estão carentes de proteção e vulneráveis a todo tipo de ato de violência.
Também é possível, contrastando essa interpretação anterior, relacionar essa parte do filme com a análise de Montesquieu, de certa forma nesse tema oposta a ideia de Hobbes, em que no tratado O espírito das leis Montesquieu considera que no estado de natureza o Homem não estaria num estado de guerra constante, mas sim num estado de paz constante, tendo em vista que o medo e a covardia seriam sentimentos mais simples, pois estariam mais diretamente relacionados às necessidades mais básicas do ser humano, que é a autopreservação, em contrapartida a raiva e a violência seriam sentimentos mais compostos, considerando que viriam depois dos anteriores. Para Montesquieu a violência, e por assim dizer, a guerra, só seria possível já com a criação da sociedade. Dessa maneira, sob essa análise, o próprio ambiente em sociedade apresentado no filme é que seria a causa de toda essa violência desmedida. Vale salientar que a sociedade apresentada no filme é cheia de vícios e degeneração.
A falta de sentido, a falta de objetivo, o niilismo, é evidente na vida do protagonista e líder da gangue. Mas não só na dele, como também em todos os outros integrantes da gangue e isso se estende a todos os demais cidadãos apresentados. A violência, a opressão, os jogos de poder, parecem ser uma tentativa de preencher esse vazio existencial.
O filme segue e o protagonista, Alexander Delarge, após ser traído por seus comparsas, acaba sendo capturado pela polícia. Ele é condenado a cumprir regime fechado por 14 anos por crime de homicídio. Após 2 anos de preso surge uma oportunidade de encurtar a sua estadia no xadrez, um método novo pretende curar criminosos em poucos dias e por conseguinte libertá-los transformados, resolvendo o problema da superlotação dos presídios. Alexander ouve sobre o programa e faz de tudo para participar. E consegue. Entretanto Alexander não sabia que o programa de “cura” posteriormente iria lhe causar tanto sofrimento.
O programa consistia em realizar diversas sessões cinematográficas com cenas horripilantes de atos terríveis, prendendo o detendo em uma camisa de força e até mesmo impedindo o mesmo, com arames especiais, de fechar os olhos, forçando-o a assistir em todos os mínimos detalhes a todas as cenas. Alexander passa por todas as sessões e então finalmente é libertado. Agora, toda vez que ele se vê envolvido em uma situação violenta ou escuta a nona sinfonia de Beethoven (Beethoven fazia parte da trilha sonora em algumas sessões) começa a passar mal e a sentir-se fortemente desconfortável.
A partir daí um personagem, o padre da prisão, diz-se contrário ao programa porque ele seria um programa desumano, pois o paciente “curado” não teria mais escolha em agir corretamente ou não. Assim ele perderia a sua autonomia e humanidade, tonando-se semelhante a uma máquina. Um ser mecânico.
Essa é uma discussão ética, onde é possível analisar a validade de uma determinação governamental capaz de invalidar as faculdades de escolha de um indivíduo. Os direitos individuais e a natureza da validade de um governo. Em John Locke vemos que um poder governamental estabelecido só é legítimo conforme os seus atos estão de acordo com o interesse do povo, ou seja, quando o governo, ou o Estado, torna-se desvinculado aos interesses do povo ele se torna ilegítimo. O que permitira aos indivíduos em organização autentica destituir esse governo e estabelecer um novo governo legítimo. Um governo autoritário coercitivo nunca é legítimo e deve ser destituído.
Vemos também sob a interpretação de Rousseau que o poder emana do povo e que um governo legítimo necessariamente passa pela vontade do povo. Ou seja, um governo despótico, autoritário, tecnocrático ou ditatorial, que corrompe a direção da nação, é contra a autodeterminação e fraternidade entre os Homens.
Enfim, Laranja mecânica é um filme muito rico e discutir várias questões importantes o tomando como linha de partida é muito fácil. Essa é uma das razões as quais Laranja Mecânica é um clássico da sétima arte. Certamente um dos filmes mais icônicos de Stanley Kubrick.